Um canto cantor/compositor fazendo turnê na Rússia (um olhar aprofundado de Dan Sheron, da banda Balto)

Dan Sheron, da banda Balto, viveu entre idas e vindas na Rússia, entre 2008 e 2010, então quando ele foi fazer uma turnê lá este ano, o país não era território completamente desconhecido.

Mas a Rússia é ENORME, e é bem diferente morar numa cidade só e fazer turnê viajando de transporte público pelo relevo acidentado do país, tocando em cidades que às vezes estavam a mais de mil quilômetros de distância uma da outra.

O Dan manteve um ótimo blog de turnê contando suas aventuras na Rússia para o site Marmoset. A página era uma celebração das pessoas com quem e para quem ele tocou, uma crônica dos desafios (dormir pouco, ter de subornar a polícia, etc.), e uma reflexão sobre por que — apesar da agenda matadora — tudo valeu a pena.

Eu pensei em fazer algumas perguntas sobre a logística da turnê na Rússia, desde como marcar shows até como se divulgar. Agradeço ao Dan pelas respostas bem pensadas. Eis nossa conversa aqui embaixo:

Uma entrevista com Dan Sheron, da Balto, sobre como é fazer turnê sozinho na Rússia

CR: Como você começou a marcar essa turnê? Com quanto tempo de antecedência você começou a marcar os shows? Você contou com um promoter, amigos locais em cada região, ou algo assim?

DS: Eu comecei esse processo cerca de dois meses antes das primeiras datas– e tudo passava por eu conseguir estar presente na Moscow Music Week, que foi organizada pelo amigo de um amigo… Quando eu comecei a ter a ideia de fazer uns shows na Rússia, em julho passado, meu amigo sugeriu que eu fosse atrás das pessoas da MMW para começar. Então, depois que a data havia sido confirmada, eu tinha um ponto de partida e comecei a procurar amigos de lá e pessoas que eles indicavam  – então, em alguns casos eu acabei conversando com promoters que me ajudaram a encontrar casas de show e a fazer divulgação, em outros casos eu trabalhei direto com as casas de show e, em algumas cidades meus amigos conseguiram organizar algo. Mas eu só terminei de confirmar datas uma semana antes de voar para lá. Baseado na limitação de tempo, e para manter a organização um pouco mais simples, eu mantive meu recorte geogŕáfico só para a parte Europeia da Rússia. Mas no futuro eu gostaria de ir além, na direção da Sibéria.

Você tinha alguma garantia? Você contava com o dinheiro da venda dos seus produtos e doações? O dinheiro dos ingressos? Como funciona a divisão do dinheiro de um show na Rússia, comparada ao modelo dos EUA?

Alguns shows tinham garantia -o resto era o que eu conseguisse de dinheiro na porta. A gente tentou deixar os preços dos ingressos baixos, para encorajar mais gente a ir, o que eu acho que funcionou em nosso favor. A gente teve um ótimo público em cidades onde eu não conhecia ninguém  e onde eu nunca tinha estado. Dito isso, a cotação da moeda dos russos é péssima – então 250 rublos por um ingresso viram US$4 – em 2010, isso teria sido US$ 8.  A mesma lógica valeu para venda de produtos da banda –eu vendi todas as camisetas, discos de vinil (e CDs) que levei comigo, mas tivemos de nos certificar de que as pessoas poderiam realmente comprá-los Em algumas cidades a gente fez um esquema de gorjeta também. A divisão de dinheiro nas casas de show pareciam muito com as dos EUA – 80% vão para o artista, ou  100%, depois de descontados os gastos.

Eu sei que planejar a rota da turnê foi um dos seus maiores desafios. Como foi, e o que você aprendeu com os erros?

A Rússia é imensa. Fazia muito tempo que eu tinha viajado para lá, e eu tinha esquecido que as viagens de trem são medidas em dias, não em  horas – “Até onde você vai?”, a resposta é: “dois dias.” Como fiz em todas as turnês anteriores, minha meta era tocar o máximo de shows o possível no máximo de cidades o possível e, acabei não deixando uma folga de tempo para chegar de um lugar ao outro – isso significa que eu chegava na cidade na hora do show, tocava e partia. Isso é comum nos EUA, onde tudo é feito de carro, mas as estradas na Rússia não são tão boas, o que causava atrasos..

A maioria dos trens de trechos mais longos é formada por vários vagões-dormitório juntos, e eu consegui marcar trens noturnos entre a maioria dos lugares. Algumas das paradas eram em horários ruins, e por isso meu sono foi muito prejudicado. Eu ficava até tarde depois do show com pessoas, pegava um trem horas depois, ou ter de pegar um trem às cinco da manhã. Em alguns casos, eu não pensei em quanto ia ter de fazer num mesmo dia.

Eis um exemplo: eu dormi 4 ou 5 horas em Yaroslavl depois do meu show em 22 de setembro. Tive de pegar um trem de quatro horas para Moscou, ir de metrô atré o trem que leva para o aeroporto e voar para Samara, para lá descobrir que o aeroporto ficava a uma hora de táxi da cidade. Eu cheguei no lugar do show meia hora antes da primeira banda começar a tocar. Depois do show, o promoter, Matvei, e uma das outras bandas me chamaram para sair com eles. Por volta das três da manhã (agora já é dia 24), Matvei se ofereceu para me levar para o aeroporto, onde eu pegaria um voo às 6h para  Kazan, então lá fomos nós, eu peguei uma conexão e eum segundo voo em Moscou, peguei um trem para o centro de Kazan, entrei num ônibus lotado onde fiquei por duas horas e meia até chegar a Yoshkar Ola, com o meu violão no colo. Da próxima vez, eu vou precisar de um tempinho entre esses shows –eu acabei exausto como não me lembro de jamais ter ficado.

A imagem que você passa em seu diário da Rússia é que o país é duro, mesmo brutal, de se fazer turnê, mas que as recompensas fizeram vale a pena. Por quê? O que houve nos shows ou nas pessoas que fez valer a pena?

Eu espero não estar sento muito pessimista – tem muita coisa e lugares bonitos lá – bosques intermináveis, arquitetura impressionante, comida incrível que não se acha em nenhum outro lugar do mundo e, é claro, as melhores pessoas…. Mas, fora dos centros turísticos mais óbvios, é um lugar desafiador de se viajar, quem dirá de fazer turnê. Os estrangeiros precisam na maior parte das vezes de “fixers”, locais que os ajudem a fazer as coisas. Eu tenho sorte o suficiente de falar a língua, o que me dá um outro nível de acesso ao sistema russo, mas, por exemplo, quando cheguei a Kazan, eu descobri que não tinha uma carona para meu show em Yoshkar Ola, como pensava ter, então tive achar uma rodoviária meio clandestina. A bilheteria era escondida nuns prédios baixos na estrada perto da ferrovia, atrás de um estacionamento enlameado. Havia uma fila gigante para comprar bilhetes, que demorou mais de uma hora. Os russos têm um gente de fazer fila muito específico, com uma porção de gente guardando lugar, então uma fila que parece ter 20 pessoas pode ter 50, e as pessoas saem para resolver outras tarefas enquanto a fila quase não anda. As pessoas estavam ficando chateadas com a espera também, a ponto de filmar com seu celular e brigar com os funcionários. Quando finalmente chegou minha hora de comprar a passagem, mostrei meu passaporte e me colocaram num micro-ônibus que não tinha lugar para o meu violão (nem pra mim)  – o motorista insistiu que eu não ia caber lá, muito bravo, mas os outros passageiros acabaram me ajudando a colocar meu instrumento no corredor e a gente partiu. São problemas pequenos, mas eles aparecem várias vezes por dia, e um sobre o outro.

Mas, tendo dito isso, todo mundo me ajudou a fazer os shows: amigos antigos e amigos novos fizeram tudo valer a pena. Você sente que as pessoas são duronas na rua – uma cara feia intencional e para tudo, mas, depois de você ter saído do nível de desconhecido, o calor deles é incrível. Meu show solo era temperado com explicações sobre as músicas, em russo, então depois dos shows as pessoas vinham falar comigo – já havia ali um contexto pro papo –e as pessoas ficavam gratas por eu ter ido até lá para tocar. Tocar para esse tipo de público é revigorante– vou falar mais disso depois.

Além disso, eu fui tão apoiado pelos promoters, e não foi só na hora de montar os shows e conseguir que as pessoas fossem até eles, mas eles também me mostraram suas cidades, me apresentaram aos seus amigos e me descolaram lugares onde dormir. A maior parte dos lugares onde toquei também tinha artistas locais tocando na mesma noite – eles foram tão receptivos e eram tão apaixonados pelo que faziam, e é incrível ver cada cidade com uma cena musical própria, muito como se tem nos EUA. Eu senti tanta generosidade por parte dos meus amigos – tenho uma dívida cármica bem grande para retribuir…

A última coisa que tenho a dizer sobre a pergunta Por que a Rússia? É porque sempre foi um lugar de paradoxos, para mim pessoalmente– eu tenho um misto de sentimentos e sensações sobre esse país, por várias razões. Estar lá é complicado e desafiador, mas não acho que eu gostaria que fosse de outro jeito. Desconfortos, estresse e uma exaustão eventual são o outro lado de um dinamismo enorme, e eu sinto todas essas coisas no momento em que as rodas do avião tocam o solo deste lugar .

Parece que você encontrou uma riqueza muito grande recursos na Rússia: galpões transformados em espaços de show, eventos culturais dentro de barcos, uma cena underground vivaz etc. Quais foram os momentos mais ricos de recursos da turnê, e você acha que topou esse desafio porque estava motivado a conhecer a cultura de um lugar diferente?

É verdade, com certeza, que encontrei muitos lugares adaptados para fazer show. Muito uso criativo dos arredores e das possibilidades – e acho que isso é um fato na vida russa há muitos e muitos anos. Muita gente fazendo as coisas com pouco, que nem of Macgyver. Eu recomendo fortemente que você dê uma olhada na história de Samizdat, da União Soviética – enquanto esse termo se refere à reprodução (muitas vezes caseira) e distribuição de literatura censurada, eles também costumavam reproduzir discos proibidos usando impressoras de raio-x de hospitais. As áreas culturais que estão se proliferando em lugares que costumavam ser industriais são muito bacanas, e eu acho que vai rolar mais delas nos próximos anos.Quanto a o que isso tudo despertou em mim? Eu não sei dizer exatamente… talvez seja a necessidade de se adaptar sempre a situações adversas – elas sempre aparecer, seja ter de ficar acordado a noite toda ou ter de convencer os funcionários do aeroporto a me deixar levar o violão comigo no voo, ou ter de pagar propina para sair de um esquisito interrogatório policial. Mas eu não acho que essas coisas sejam exclusivas de quem faz turnê na Rússia – eu acho que fazer turnê é geralmente uma série de momentos “eu quase não saio vivo desta”

A sua plateia “típica” na Rússia — se é que dá para imaginar tal coisa— mais atenta e apoiadora que a plateia “típica” dos EUA?

É o que pareceu, certamente, enquanto eu estava lá – mas eu realmente não sei se essas plateias eram típicas – porque na maioria dos shows as pessoas estavam saindo de casa para ouvir músicas em inglês, sons que fogem ao Europop – então eram pessoas meio jovens que curtem indie rock. Mas daí houve alguns shows em que as pessoas estavam lá mais acidentalmente (os shows de graça em bares) – e mesmo essa galera estava surpreendentemente ligada à música – ficavam em silêncio durante as partes mais silenciosas da música e se entusiasmaram com aplausos. Não eram só jovens, mas casais mais velhos, motoristas de táxi, bêbados etc. – e eles pareciam muito se envolver com as minhas histórias, especialmente porque muitas músicas do começo do Balto são ligadas ao período em que eu morei na Rússia. Muito disso tem a ver com a curiosidade – muitos artistas russos cantam em inglês, mas é raro ver americanos fazendo turnê ali, então as pessoas ficam animadas com a novidade. E eu vendi todos os produtos da banda, o que é sempre um bom sinal.

Quando você está constantemente em movimento, indo de avião para trem ou ônibus, como promover um show na Rússia? Redes sociais? Relações públicas regionais? Amigos?

Comparando com seis anos atrás, há wifi em todo os lugares, então eu consegui ficar conectado com meu telefone mais do que eu esperava, mandando posts e conteúdo com alguma regularidade – mas eu com certeza senti as limitações de estar me movendo o tempo todo. Eu me apoiei muito nos meus amigos e nas outras bandas, para promover os shows nas outras plataformas que eles tinham – especialmente na rede social russa que é mais usada que o Facebook, chamada vKontakte(VK). Fãs de música se engajam bastante em grupos de VK, que geralmente são regionais, e eles compartilham conteúdo em abundância de graça – e eles vão de fato a eventos em que confirmam presença. Os promoters realmente se mobilizaram nos grupos de VK e foi surpreendente o quão bem isso funcionou (ainda mais se comparar com a canseira que as pessoas estão do Facebook nos EUA). As bandas locais com quem eu toquei em cada cidade também levaram seus fãs. Além disso, eu tenho amigos bem próximos que ajudaram a “agitar” meus shows e trazer pessoas – juntando tudo, foi um esforço hercúleo, mas que valeu a pena.

Além de ter de ajustar a rota um pouco, o que você faria de diferente na próxima vez? Vai haver uma próxima vez?

Vai ter uma próxima vez, sim! Essa foi uma missão preliminar à Rússia, em nome da nossa banda – eu queria ver qual era a reação do público, quais eram os desafios dali e como era melhor agir para montar uma turnê. Isso vai ser super difícil, mas acho que já fiz algum trabalho de campo – as pessoas com quem eu estava trabalhando lá pareceram bem animadas com a possibilidade de a gente voltar para lá, então com planejamento suficiente, acho que pode rolar. No futuro, eu acho que garantir uma divulgação sólida dos shows faria toda a diferença para conseguir que mais gente apareça nos shows, e achar outras oportunidades de show além das cidades em que estive também seria importante.  O Ivan Bezborody, que marcou meus shows em Nizny Novgorod e em Yoshkar Ola, também conseguiu marcar uma entrevista com rádio (que eu acabei perdendo porque fiquei preso no trânsito) e uma seção de perguntas e respostas num espaço cultural chamado Ziferblat. Isso acabou sendo um dos pontos altos da turnê – foi ua conversa informal junto com um almoço bem tarde, com cerca de 12 jovens e uma banda local –a Givenshy – com quem eu tocaria naquela noite. Foi uma discussão aberta sobre música, viagem e língua, com toques meus e de outros músicos. Esse formato realmente abriu espaço para troca cultural, e eu espero que no futuro a gente possa fazer mais coisas assim.

Fazer uma turnê na Rússia é obviamente ótimo para conquistar novos fãs e vender produtos lá, mas de que maneira você usou essa experiência para divulgar sua música ou conquistar novos públicos nos EUA?

Além desta entrevista? Eu caí na Rússia por acidente uns oito anos atrás, e eu não tinha uma ideia de como eu já ter ido para lá ia ser um bom tópico de conversa. Eu queria fazer shows nessa região desde que comecei a fazer minhas primeiras turnês

Mas, como mostra este post, as pessoas ficam muito curiosas sobre como é a antiga União Soviética –o lugar ainda é pouco explorado por americanos, e tocar lá te coloca no centro da atenção. Você não pode ser só turista ou observador– as memórias que eu tenho de lá são um recorte bem específico do país e eu fico contente que as pessoas queiram ouvir sobre isso. Ao mesmo tempo, preciso dizer algo, para ser sincero. A Balto com certeza foi mais divulgada nos estados onde eu toquei, mas a parte mais importante é o processo de tocar e de entrar em contato com meus novos fãs russos – fazer turnê e tocar pensando na música em si e nas pessoas com quem você vai se conectar–  mais do que na imprensa, nos negócios e na promoção – eu sei que esses aspectos são importantes, mas tento colocá-los o máximo de lado que eu posso.

Agradeço ao Dan de novo pelas respostas. É sempre bom ler algo sobre as aventuras de outro músico fazendo turnê em um lugar em que eu provavelmente nunca vou tocar. Se você é músico e está pensando em fazer uma turnê pela Rússia, você achou essa entrevista útil, motivadora ou desencorajante? Você já fez turnê na Rússia? Como foi sua experiência? Alguma dica para marcar show ou divulgá-los por lá? Conte para a gente na seção de comentários aqui embaixo.

Confira a música de Balto no site www.baltoamerica.com.